domingo, 21 de agosto de 2022

MENINA LINDA SEM BONECA

                                                         GUSTAVO MARIANI

 Ketely não conseguia acompanhar as coleguinhas da escola, indo para o recreio das 10 da manhã, por andar muito devagar – usava uma muleta no braço direito, devido problema na perna do mesmo lado. Por ser vagarosa, era sempre alvo de gozações. Não raro, os meninos escondiam os seu objetos, depois que ela ultrapassava a porta da sala de aulas. Era uma farra vê-la, como uma barata tonta, à procura de suas coisas.

 Certo dia, Ketely chegou à escola sem livros, cadernos e lápis. Quando a professora cobrou-lhe, disse que tudo havia sumido de onde sentava-se, na véspera, após ir ao recreio. Imaginava que alguém os havia esondido. No entanto, a mestra não olhe deraouvidos, preferindo achar que ela os perdera, por falta de cuidado. E proibiu-lhe de frequentar as aulas, enquanto não se apresentasse com o material escolar.      

 Ketely contou à mãe do que lhe acontecera, mas esta não tinha dinheiro para comprar nada além do que fosse o suficiente para não passarem fome. Moravam em Brasilinha de Goiás, com a mãe trabalhando no “se vira” da venda de tapioca, frutas, etc que ela comprava em um supermercado pra tentar vender por um pouquinho a mais pelas esquinas da cidade.

Naquela situação, Ketely passou a acompanhar uma tia que pedia ajuda ao povo na Avenida W-3 Norte de Brasília, do lado do Setor Hospitalare. Conseguiam carona às seis das matina e, pouco depois das sete, já estavam pelos gramados e semáforos da área mendigando. A mãe e a tia, que sempre tiveram empregos, juravam que, após a chegada da pandemia do Coronavírus-19, nunca mais conseguiram nada. Tinham que se virar, como fosse possível. Daquele jeito, Ketely amanhecia o dia com fome, e, o máximo que obtinha para quebrar o jejum era um pirulito que lhe oferecia um sujeito que se vestia de Homem Aranha para vender bugingangas pelos mesmos semáforos da área em que ela frequentava.

Ketely, no entanto, não tinha velocidade na pernas para dfazer pedidos, pelos semáforos, uma ajuda para comprar materiale escolar. A tia, com o que juntava, separava um pouco para ver se conseguiria ajudá-la a voltar para a escola.


  Certa manhã de uma quinta-feira, passsando por onde Ketely e a sua tia mendigavam, um repórter que passava pela área, viu o Homem Aranha se virando naquela sua labuta. Parou no estacionamento mais próximo, desceu do carro e foi conversar com o cara, com o qual fez interessante matéria, mostrando como o brasiliense desempregado se virava pelas ruas da capital do país em tempos de pandemia. Após o papo, ele caminhou até onde viu uma garota com muletas, debaixo de sol ardente. Aproximou-se dela, puxou papo e a menina contou-lhe porque estava por ali. Ele prometeu-lhe levar-lhe o que lhe tirara da escola,  clicou fotos dela e disse-lhe que iria contar o seu caso pelas páginas do jornal.

 Chegado à redação e falado sobre a garota de muletas, o repórter foi proibido, pela Chefia de Reportagem, de escrever qualquer coisa sobre a menina, pois a Secretario de Educação não iria gostar, e o diário, que contava com publicidade do Governo, poderia perder o subsídio.

 Poucos dias depois, o repórter voltou ao final/início da Asa Norte, levando o matereialescolar que prometera a Ketely, que pôde, então, voltar pra escola. Por lá, durante um dos recreios das 10, ela contou às amigas que iria sair no jornal, porque  o repórter ficara emocionado ao vê-la se arrastando-se com uma muleta debaixo do sol quente. Uma das colegas, quase sua vizinha na quadra onde residiam, disse que “queria, também, sair no jornal”, e perguntou-lhe como poderia fazer pra ter a mesma sorte.

- O repórter disse que ele passa por todos os lugares – Ketely respondeu.

- Então, me empreste a sua muleta, amanhã à tarde, e vamos pra avenida ver se ele passa e me fotografa. Se ffizer isso e me colocar no jornal, lhe dou uma boneca – um sonho que Keterly nunca conseguira tornar realidade.

 Ketely, a colega e um irmão desta, de 11 na idade - elas duas  tinham 10 – foram para a avenida, conforme o combinado. A colega usou a sua muleta, ficaram por ali durante quase duas horas, e nada de o repórter aparexcer. Chateada, a menina chamou Ketely por mentirosa e atirou a muleta em cima dela, acertando o seu pé direito e fazendo-a chorar, de dor. De quebra, no dia seguinte, espalhou o acontecido entre as colegas de colégio e, durante o recreio, formou uma roda, com Ketely no meio, para fazê-la ouvir os gritos de “mentirosa, mentirosa, mentirosa”, contando com a ajuda dos meninos.

 Pelos dias seguintes, Ketely não queria mais sair para o recreio, por causa do coro de “mentirosa” que era obrigada a ouvir. Em um sábado, quando ela estava pelos gramados do final/início da W-3 Norte, acompanhando a tia, o repórter passou, a viu, parou e foi conversar com ela, que contou-lhe da humilhação que sofria dos colegas porque contara que iria sair no jornal.


- Não se preocupe. Mudei de emprego e, no jornal que estou agora, será mais fácil aprovar as minhas pautas. Dias depois, ele levou-lhe a matéria com foto dela no jornal. Na segunda-feira, Ketely o apresentou às colegas de escola que a chamavam por “mentirosa”. Mesmo assim, foi colocada na roda. A menina que comandava os gritos de “mentirosas, mentirosa, mentirosa” rasgou o jornal e atirou os estragos sobre a sua cara. Ainda, a empurrou, fazendo com que a muleta, durante a sua queda, batesse em sua testa. Ketely voltou a chorar de dor. Mas, nuca mais, ninguém a chamou por “mentirosa”.

Passadas 15 viradas de calendário, Ketely era uma das jornalistas mais respeitadas de Brasília. Cumprindo pauta investigativa sobre malversação de fundos públicos no Governo de Brasília, ela constatou que uma das “colarinhas brancas” que descobrra era,exatamente, aquela sua antiga colega que a maltratava na escola e, então, comandava uma das principais secretarias de Estado no Distrito Federal. Marcou entrevista com a tal, apresentou-lhe todas as provas sobre as suas más ações e, após a moça pular pra tudo quando era lado, tentando fugir dos fatos, ouviu dela a súplica de poupar-lhe de denúncias. Até ofereceu-lhe suborno para não escrever nada contra ela. Ketely olhou-a no fundo dos olhos e respondeu-lhe:

- Não posso deixar de denunciar o que é verdade. Não sou mentirosa!


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